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Foto do escritorRu Arriaza

Reflexão sobre o livro "Onde aterrar – Como se orientar politicamente no antropoceno"

Atualizado: 25 de set. de 2023

Para começar, entender o que é "antropoceno" talvez seja um bom movimento para nos situar. O termo, cunhado pelo químico holandês Paul Crutzen, define uma nova era geológica caracterizada pelo impacto do homem na Terra.


Pela primeira vez na história, a massa antropogênica (o peso das edificações; transportes; descarte e acúmulo de lixo) superou o peso da biomassa de tudo o que é vivo, o peso das florestas e seus ecossistemas, criando um cenário de devastação de habitats pelo extrativismo onde o tempo de regeneração da terra não consegue acompanhar o consumo humano.


É como se gastássemos mais do que ganhássemos.

A história geológica do nosso planeta mistura-se com facilidade a evolução da vida, como testemunho de diversos cenários climáticos pelos quais o planeta passou. Hoje, a humanidade percebe suas marcas no caminho, já não mais como pegadas na areia a serem desfeitas pelo vento, mas na criação concreta de monólitos levantados para atingir o progresso como movimento.


Aprendemos a nos organizar, criamos Estados, leis e ideais que com a mesma facilidade que surgem, como lampejos de vaga-lumes à noite, poderiam ser varridos da existência conforme o tabuleiro geopolítico que a experiência humana se tornou. Mais que sobreviver, fomos instruídos a cultivar estilos de vida desconectados do solo.


Bruno Latour trata do "solo" como uma mescla de território com a composição entre habitante e ambiente (infraestrutura e espaço cultural). Interessantemente, descreve a busca pela modernização patrocinada por uma "elite obscurantista", termo que ele utiliza no livro, como se fora um grito de batalha implacável: resistir não é uma opção. Todo atrasado será punido com o banimento do pacto civilizatório.


Esse grito ecoa em diferentes frentes, todas apontando para a mesma direção. Como uma flecha guiando o sentido; em sua ponta então os modernizadores, aqueles que supostamente iluminam o caminho e convidam o homem a ser mais que se concebe. Normalmente não negociam com agentes da resistência na traseira da flecha.



A busca de modernizar o planeta na totalidade, não é igual a ter um planeta para todos.


Crises migratórias, que na visão de Bruno Latour, decorrem do negacionismo climático, escancaram o fluxo de milhões de pessoas que possuem sua memória, história e cultura, mas agora sem território, vivendo o êxodo moderno na busca d'uma promessa vazia prevista pelo mito da modernização, o autor os identifica como "privados de terra".


Querem um lugar próspero e seguro para si e suas famílias, que vieram de locais tomados por conflitos armados; desastres naturais; e explosão da desigualdade. São pessoas a demonstrar que pelo andar da carruagem, não teremos mais casa.


Não pela bizarra ideia de que essas pessoas nos tomarão os lares. Mas que estamos cada vez mais próximos de uma situação onde possamos ser duramente afetados pelos vetores da mudança que agem em benefício próprio. As relações humanas estão cada vez mais deterioradas. Não é possível haver dois mundos em um. O fabricado e outro, material. É o equivalente a tapar o sol com uma peneira.


Hoje assistimos ao noticiário as filas intermináveis e embarcações cheias de refugiados buscando asilo em outros países. Amanhã podemos estar nestas mesmas filas e barcos. Negar essa possibilidade é a continuação da normalização do absurdo, que são efeitos sem causa.


Mocinhos e bandidos; homens futuristas de lata lutando contra neandertais?


A pergunta primordial de Latour aqui é "Devemos continuar alimentando grandes sonhos de evasão [deslocamentos dos que não são uber-rich] ou começamos a buscar [ ou restaurar] um território que seja habitável para nós e nossos filhos?"


O Século XX foi uma arrancada em termos tecnológicos para a humanidade. A expectativa de vida cresceu, a produção industrial e o acesso a bens de consumo tornaram-se d’uma busca pelo conforto e praticidade em uma validação social intrínseca ao valor humano.


Entretanto, o crescimento industrial-tecnológico tem um alto preço, o que não é novidade há décadas para as grandes potências do mundo. Outro fato que todos já sabem é que temos apenas um planeta e para mantê-lo, é necessária a discussão constante sobre o rumo das coisas para não sonambular no vão do precipício.


O progresso tornou-se um ideal que atende aos interesses daqueles que nos dizem pelo que vale ou não a pena morrer por. Bruno nos chama a atenção para isso ao dizer: "As pessoas não se dão conta propriamente de que a questão do negacionismo climático organiza toda a política do tempo presente".


A negação parte de ações que não creem em consequências. Como se dissessem "querem que voltemos aos tempos ferais. Querem abdicar da civilidade para abraçarem árvores! Eu não aceito isso. Quem está comigo?". Cria-se uma cultura de cooptação popular sobre uma visão de mundo que ignora o dano ecológico e seus desdobramentos, materializando-se como efeito da globalização.


Desastres ambientais que nos aproximam em velocidade galopante do ponto de não retorno, impossibilitando a manutenção da vida pelos biomas naturais, significando uma ampliação das tragédias humanas que acabam sendo tratados como mito ou especulação em suas causas.


A ideia de abdicar, ou ao menos repensar pontos de identidade criados pelo consumo; o carro que você dirige; o custo real da alimentação que perpassa os bolsos e atinge biomas inteiros; onde você mora (e principalmente, se mora em algum lugar); seus apetrechos domésticos e de trabalho parece absurda quando visto como certa histeria.


Difícil e necessária convivência.


A divisão original daquilo que compreendemos como ser de esquerda ou de direita começou na França de 1789. Os políticos eleitos sentavam-se na frente do presidente nas votações da casa, e se posicionavam dessa forma, uns, a esquerda e outros a direita.


Quase trezentos anos depois, Bruno Latour nos pergunta se tal modelo ainda é adequado para retratar as complexas divisões políticas suprimidas a dois espectros, e que facilmente se confundem e nos distraem do ponto mais importante de nossa existência terrestre: preservação das condições para a vida.


Ainda que seja parte do imaginário que pautas de preservação ecológica façam parte exclusivamente do campo ideológico da esquerda, isso não é necessariamente verdade. Bruno diz: "No fim das contas, a única coisa que interessa não é saber se a pessoa é contra ou a favor da globalização, contra ou a favor do local, mas sim entender se ela consegue registrar, manter, respeitar o maior número de possibilidades de pertencimento ao mundo".


"[...] A antiga matriz que permitia distinguir os 'progressista' dos 'reacionários' se definia, desde a irrupção da 'questão social' no século XIX, pela noção de 'classes sociais', elas também dependentes do tipo de posição que ocupavam naquilo que chamávamos de 'processos de produção'".


O progressista do passado pode ser o reacionário de hoje, e isso não é a ausência da coerência do indivíduo, mas o reflexo de um estado de confusão que tomou de assalto as relações entre familiares, vizinhos, conterrâneos, e terrestres para com o local onde vivem, e principalmente, sua própria visão sobre a pergunta qual o meu lugar nesse mundo?

Deslizar da ponta da flecha é mais fácil do que se pensa, pois somos apoiadores descartáveis.


As fronteiras físicas não conseguirão conter milhões de migrantes vulneráveis, porém a primeira cerca a ser questionada, é a do pensamento que reduz todo esse cenário calamitoso as fake news e artimanhas conspiratórias que esvaziam a própria capacidade crítica de compreender contextos complexos. Um exemplo simples é se negar a usar uma máscara numa pandemia como um ato político pela liberdade individual.


O nascimento do "reaça", é sua resistência ao novo, que vem automaticamente etiquetado de fábrica como "bom". "Recusar a modernização é também resistir corajosamente" [...] "Será que é possível fazer os que seguem entusiasmados com a globalização-menos entenderem que é normal, justo e indispensável querer conservar, manter, garantir o pertencimento a uma terra, a um lugar, a um solo, a uma comunidade, a um espaço, a um meio, a um modo de vida, a uma profissão, a uma habilidade?"


A ideia de vivermos como um coral, sem tempo para os desafinados, numa tentativa de tornarmo-nos ecos da mesma voz é a lógica da globalização, que nos afasta do material, do tangível, de nosso solo e nosso futuro.


Encerro minha análise fazendo das palavras de Bruno Latour as minhas quando diz "O autor, não sendo nenhuma autoridade em ciências políticas, só pode oferecer aos leitores a oportunidade de refutar essa hipótese e procurar outras melhores". Compre agora o livro Onde Aterrar – De Bruno Latour clicando aqui

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